terça-feira, 20 de outubro de 2009
Figura Popular
Não muitas as figuras populares que passaram a viver em Macapá a partir de 1944, data da instalação do Território Federal do Amapá. Eram pessoas que pareciam conformadas com a carência quase absoluta que o destino lhes impôs. A maioria não dependia apenas da solidariedade dos moradores porque trabalhavam. Não cometerei a heresia de identificar os três personagens que vão ilustrar este artigo: Picolé, Coscorobil e Chunda. Quem via a figura do comprido e magro empurrador de um carrinho de mão feito com madeira, tinha a impressão de que o chão oscilava permanentemente sob seus pés. Poder-se-ia julgar que as ruas de Macapá, sem asfalto e praticamente sem nivelamento faziam o carrinho trafegar aos solavancos. É claro que o balanceado do carrinho forçava o condutor a acompanhar o embalo. Não posso deixar de citar que o nosso primeiro personagem, sobejamente conhecido como Picolé, tinha a ginga própria dos sambistas. O Picolé caminhava como um pêndulo de granito por nossas ruas, avenidas, becos e caminhos mal traçados. Não rejeitava serviço e também não era careiro. O importante era ter o mínimo necessário para satisfazer algumas das suas necessidades básicas e principalmente poder dar uma beiçada no "refresco de Abaetetuba". Uma carga ou encomenda até que podiam demorar a chegar ao seu destino, mas chegavam. Quando algum freguês reclamava da morosidade, o Picolé dizia: "de vagar e sempre". O ponto de estacionamento do carrinho era na Doca da Fortaleza. Sua permanência a espera de freguês era em qualquer lugar onde se vendia a "água que passarinho não bebe", mas preferencialmente nas baiúcas de velhos conhecidos. Quando um consumidor da branquinha rejeitava a dose por considerá-la aquém da medida normal, o Picolé fazia a danada descer pela goela a baixo afirmando: "a casa agradece". Picolé era filho de uma família tradicional de Macapá e não era metido a valente, mas amável, cheio de dengos e salamambeques na voz, tal qual malando de algum morro carioca. Também era galanteador. Chamava as mulheres de "minha flor" e os homens de "meu cravo". O nome de batismo do Picolé poucas pessoas sabiam. Não era preciso usá-lo, pois bastava gritar Picolé que ele logo respondia: "fale meu patrão". Como ele era negro, o apelido completo era Picolé de Açaí. Uma coisa todo mundo sabia. O Picolé era o único empurrador de carrinho - de - mão que enfrentava o sol e a chuva com a mesma galhardia e sem derreter. Aliás, foi num inicio de noite com muita chuva que um raio o atingiu no leito da Rua Cândido Mendes, um pouco além da Rádio Difusora. O risonho e galanteador Picolé morreu carbonizado, deixando a cidade pesarosa com seu passamento. Ainda hoje estou convicto que a despeito de algumas mazelas cometidas, o Picolé deve estar acomodado em lugar tranqüilo, no canto do céu. Afinal de contas, seria desgraça demais se um outro destino lhe tenha sido dado.Quando sóbrio e concentrado, desenvolvia seu trabalho de alfaiate na Alfaiataria Atayde, o CHUNDA nem de longe parecia o sujeito ranheta que fazia discursos sem nexo e declamava poesias maliciosas sob o efeito da cachaça. Era uma espécie de Nezinho do Jegue, aquele personagem da novela "O Bem Amado" que adorava destratar o Prefeito de Sucupira. A diferença é que o Chunda não era carroceiro e sim alfaiate. Mamado, coçado ou meio pau meio tijolo, expressões que o povo usava para rotular alguém de bêbado, o Chunda lascava a pua no Getúlio Vargas, no Magalhães Barata e no Janary Nunes, respectivamente presidente da República, governado do Estado do Pará e governador do Território Federal do Amapá. Ele só não foi alfaiata da Guarda Territorial porque bebia demais. Melhor sorte teve seu companheiro da alfaiataria, o Formiga, que fez parte da alfaiataria da GT e se tornou funcionário público federal. Sem ingerir cachaça o Chunda era um mestre na costura, uma verdadeira agulha de ouro. O uso freqüente da maldita pinga provocou tremores em suas mãos e comprometeu sua reputação. Para não ficar na rua da amargura, Seu Atayde permitira que o Chunda fizesse as costuras de arremate e pregasse botões. Os discursos do Chunda eram pausados e longos. Às vezes ele esquecia do que dizia e ficava com o dede indicador da mão direita para o alto como se fosse uma estátua. Seu palanque era um cone de cimento por onde passava a rede de esgoto da Avenida Cora de Carvalho, situado antes da ponte de madeira que era o prolongamento da Rua São José e se estendia até a Avenida Antônio Coelho de Carvalho. No exercício de sua oratória inconseqüente o Chunda não admitia que alguém o interrompesse. Quando isso acontecia a mãe do sujeito inoportuno pagava o pato. Curioso é que muitas pessoas paravam para ouvi-lo e invariavelmente pediam para ele declamar uma poesia amalucada denominada Qual é? Qual é o sol que não alumia? Qual é o padre que não é decente?Qual é o pão de cada dia? Qual é o cristão que não é crente?Qual é a estrela que não brilha? Qual é o fogo que não é quente? Qual é a mãe que não é filha? Qual é o covarde que não mente?Qual é o gato que não mia? Qual é o c.. que não tem dente?O Coscorobil também tomava os seus goros, mas não perturbava ninguém. Ele dizia que tinha sido embarcadiço em vapor de carga e conhecia quase toda a Amazônia. Era um homem muito forte, uma espécie de Maciste ou Tarzan das nossas plagas. O apelido até hoje causa espécie, sendo desconhecido seu significado. A robustez do Coscorobil permitia que ele carregasse nas costas até pequenos guarda-roupas. Dificilmente ele usava carrinho de mão, preferindo exibir a força descomunal que possuía. Não importava que o destino da carga fosse o Trem, a Favela, o Laguinho ou mesmo o centro da cidade. Morava no Barraco dos Imigrantes, edificado na esquina da Avenida Cora de Carvalho com a Rua São José. Seu corpo era queimado pelo sol, sua barba mal cuidada era bem espessa e o cabelo parecia um amarfanhado. Num primeiro momento, qualquer criança que o visse ficava amedrontada. Depois, ciente de que o Coscorobil não fazia mal a ninguém, se acostumavam com ele. Coscorobil fascinava-se com o futebol que a molecada jogava no campo da ala da Praça Veiga Cabral, no espaço onde demora o Teatro das Bacabeiras. Lembro bem do Coscorobil ao ponto de comparar a sua ampla figura com o personagem "O Ébrio", criado pelo Vicente Celestino."O Coscorobil também tomava os seus goros, mas não perturbava ninguém. Ele dizia que tinha sido embarcadiço em vapor de carga e conhecia quase toda a Amazônia. Era um homem muito forte, uma espécie de Maciste ou Tarzan das nossas plagas. O apelido até hoje causa espécie, sendo desconhecido seu significado." Extraido da pag Diario do Amapá editorial Nilson Montoril
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